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Suburbia

Galeria da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

RAFAELA NUNES e SILVIA RODRIGUES

17.03.17 — 23.03.17


Onde antes havia uma floresta, um campo de cultivo a perder de vista, um bosque romântico selvagem ou talvez grotesco no extremo de um jardim apalaçado, vislumbra-se agora um pedaço de verde entre zonas urbanizadas em diferentes tempos, um terreno baldio onde cresce mato rasteiro, uma horta onde alguém cultiva informalmente legumes. E pode haver mesmo uma barraca ou um contentor onde se guardam alfaias ou onde alguém dorme entre lixo, materiais ao acaso ou tesouros esquecidos.

Possivelmente, à medida que os centros das cidades se encenam de modo perfeccionista para agradar ao turismo de massas e aos habitantes progressivamente mais expressivos do liberalismo económico global, fazendo proliferar os estereótipos, processa-se um desvio da energia vital dos processos criativos para locais que não apenas favorecem alguma viabilidade financeira mas também onde o incompleto ou o por fazer abrem brechas mais favoráveis ao imaginário. E assim, nos limites e nos interstícios das cidades, nas cidades escondidas dentro e debaixo das cidades irrompem sinais de uma espécie de vida subterrânea ou paralela de habitantes menos visíveis cuja sobrevivência parece, frequentemente, depender de pouco, muito pouco – e não apenas literalmente. Dar corpo a uma pintura, senti-la como alimento vital para um tempo de passagens e mutações imprevisíveis pode ser também um gesto de sobrevivência, e de conquista de uma outra normalidade. Para Barry Schwabsky, a pintura é o que se aproxima mais da ideia comum de arte e da possibilidade de, como tal, concretizar o projeto moderno de unir a arte com a vida quotidiana.[1]

Assim, para Rafaela Nunes, a prática de uma pintura segura e informada trata de perseguir e dar forma a uma espécie de sentimento de estar fora do tempo que certos lugares propiciam, lugares que, pela sua atipicidade, engloba sob a designação de “nenhures”. Algures, não interessa onde, eles assumem uma dimensão precária que advém dum misto de condição nómada, de abrigo improvisado e de remissão quase mágica ao tempo da infância. Ao permitirem instaurar uma possibilidade de experiência ou coexistência com a imaginação, estão fora do que Marc Augé classificou como não-lugares e não são também terrain vague, mas algo mais do foro da utopia. Não é por acaso que o carácter mutante dos espaços suburbanos, em frequente situação de espera que integra ruínas e promessas, agrada tradicionalmente aos artistas, nesses lugares funcionando frequentemente espaços alternativos de forte energia criativa.

Quanto a Silvia Rodrigues, os lugares parecem importar menos na representação, já que não surgem deles sinais diretos visíveis, mas são determinantes de uma condição instauradora do jogo da invenção ao explorar a possibilidade de personagens situados na tensão pendular persistente entre o campo e a cidade. Aí, nos limites precários entre a megapolis despersonalizante e o desejo dos espaços íntimos, pisam a apropriação de uma hipotética identidade nas bordas da ironia, da sátira ou do grotesco e, talvez, da busca de um encantamento que suspenda a descrença. No seu caso ainda, remete especialmente para o questionamento das categorias tradicionais do comportamento feminino, em especial – também ampliando o sentido da periferia dos lugares onde, repentinamente, emergem novos centros enraizados no poder de uma subjetividade em ruptura. E é também entre formas que hesitam do gráfico para o pictórico que a expressão acontece caprichosa, ora impulsiva ou delicada.

Para ambas, Rafaela e Silvia, onde antes havia uma floresta, um campo de cultivo a perder de vista - como dizia eu no início – há entretanto muros, paredes, por vezes espaço ainda por destinar e, indubitavelmente em ambas as artistas e tantos outros, ecrãs onde se abrem mundos.

Afinal, é nesses lugares que nascem sempre os quadros, também eles muros, também eles ecrãs, também eles espaços por destinar, no limite das cidades.

— Isabel Sabino, Março 2017

[1] Schwabsky, Barry – “Everyday Painting”. Vitamin P2, New Perspectives in Painting. London/New York: Phaidon Press, 2011, p. 015.